Quando eu
recebi o diagnóstico de Espondilite Anquilosante, confesso, fiquei confusa,
perplexa e chocada.
Já havia
mais de dez anos que eu lutava contra um inimigo invisível que me roubava a
energia, a força e a vitalidade. Ainda assim, eu me choquei.
Foi um
misto de sentimentos. Por um lado eu me via absolutamente perplexa com o fato
de que eu realmente tinha uma enfermidade crônica, incurável e o pior de tudo,
debilitante e progressiva, mas por outro lado a enfermidade já estava aqui há
muitos e muitos anos, minando minhas forças e sabotando meu futuro, então vamos
lá! Qual a novidade?
A novidade
é que meu inimigo agora tinha nome, e com o seu nome vieram juntas as armas para
derrotá-lo.
E havia
outro alívio. Eu não estava louca, não era frescura nem chilique.
Há dez anos
atrás quando desconfiaram pela primeira vez de que eu pudesse ser portadora de
uma doença autoimune, eu contei com pouquíssimos amigos ao meu lado.
Há dois que
posso citar sem medo de ser injusta com todos os outros: Luciano Demetrius e Marina
Korte.
Foi com
ombro deles que eu contei quando chorei, surtei, desmontei.
Eu que era
“firmona” na igreja. Cantava, dançava e ensinava as crianças a dançar, tive meu
momento de queda e desespero. Na época, as dores eram insuportáveis, e eu
desmaiava e perdia bebês.
Eu desabei!
E com raras exceções, como a Silvia que até chorou quando eu contei da suspeita
da médica, quase todos os outros lançavam olhares desconfiados, como se tudo
não passasse de uma encenação exagerada. Na ocasião eu escrevi no meu blog que
havia tomado um porre em São Paulo. Eu escrevia entre outras coisas sobre a
generosidade de uma mulher estranha, que me encontrou vomitando no banheiro de
um boteco da Rua Maria Antonia. Sentou ao meu lado, ali ao pé da privada,
segurou a minha testa enquanto eu vomitava, e ainda acarinhava meus cabelos.
Não me fez
uma pergunta, não me julgou. Sentou-se ali com uma bêbada desconhecida e tudo
que fez foi dar amor. Eu comentei que naquele momento era como se visse o
próprio Deus ali ajoelhado ao meu lado, cuidando de mim. E sim, essa é a visão
que eu tenho de Deus.
Eu chorei
com ela e comecei a gritar que ia morrer, que não ia mais conseguir dançar, que
não poderia ter filhos e que teria uma vida cheia de limitações. Ela me abraçou
e disse: Meu tio tem câncer. Eu sei como é triste enfrentar uma doença sendo
assim tão jovem, mas vocês vão ficar bem.
Não tenha medo que tudo ficará bem.
E eu saí de lá tomando essas palavras como profecias para a minha vida e tendo a certeza de que eu havia encontrado uma dessas fadas de botequim.
Não tenha medo que tudo ficará bem.
E eu saí de lá tomando essas palavras como profecias para a minha vida e tendo a certeza de que eu havia encontrado uma dessas fadas de botequim.
Postei o
que aconteceu no meu blog. E arrematei com uma música do Los Hermanos que
dizia: Deus manda a cavalaria, que hoje a fé me abandonou. ( música original
dizia: se existe Deus, manda a cavalaria).
Não sei se
foi autocomiseração, carência ou puro excesso de sinceridade, mas o castigo
veio a galope: O post do porre aliado a outras denuncias de má conduta cristã
da minha parte (algumas absolutamente infundadas e caluniosas) me levaram a ser
“disciplinada” pela direção da igreja.
Imagina que legal! Você descobre que está doente, toma um porre desesperada com a situação e daí é castigada por causa disso. Talvez o esperado fosse tomar o porre escondido e continuar fazendo cara de super santa, mesmo sentindo que o mundo ruía aos meus pés.
Imagina que legal! Você descobre que está doente, toma um porre desesperada com a situação e daí é castigada por causa disso. Talvez o esperado fosse tomar o porre escondido e continuar fazendo cara de super santa, mesmo sentindo que o mundo ruía aos meus pés.
Apesar de
toda dor eu não posso me queixar de nada disso.
A suspeita
de uma doença ruim me levou ao limite da angustia e isso de certo modo foi
absolutamente libertador.
Eu passei
os primeiros dias cantando Chico Buarque: Façam muitas manhãs que se o mundo
acabar eu ainda não fui feliz!
E daí
decidi ser feliz na marra!
Isso
colocou muitas coisas da minha vida em crise. Já não havia espaço para nada
mais que não me fizesse bem.
Não posso
dizer que isso chegou a ser algum tipo de manifestação hedonista. Eu sempre fui
muito certinha, muito mais voltada aos outros do que a mim mesma, e nem sabia
direito como fazer para viver só o que me agradava, mas eu comecei a tatear meu
passado perdido e meu futuro embaçado.
Sabe quando
a Clarice Lispector diz que ate cortar os próprios defeitos pode ser perigoso,
porque não se sabe qual e o defeito que sustenta o edifício inteiro? Então, foi
assim...
Cortei
tanto das minhas loucuras, ousadias e rebeldias, que já não me achava não
espelho.
Eu já não
recitava a bíblia, mas Cecilia Meirelles: “Eu não tinha esse rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro. Nem estes olhos tão vazios, nem os
lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas.
Eu não tinha este coração que nem se se mostra. Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?
“. E Mario de Sá Carneiro: “Perdi-me
dentro de mim porque eu era labirinto, e hoje quando me sinto, é com saudade de
mim”.
Tudo ao meu
redor sufocava, o trabalho, o casamento, a família e alguns de seus problemas
recorrentes e um “tantão” de falsos amigos que jurava de pé junto que eu não
percebia o mal que me causavam.
Apesar
desse entorno, eu achava que teria a vida toda para consertar tudo e o senso de
finitude me despertou rapidamente da letargia que me acometia.
Nessa
época, minha jovem prima, que estava lutando no hospital lutando contra um
lúpus horroroso era meu termômetro. Ela era ainda mais jovem que eu e tinha
dois filhos para criar.
Foi nessa
hora, que os “conselhos” da Isadora
Duncan deram direção pra minha vida: “ Você já foi ousada, não permita que a
amansem”.
E daí
endoidei, fui longe, rompi amarras, me libertei, me permiti, e infelizmente no
processo, feri gente que não merecia, mas foi assim que recomecei, que me
reconstruí e me reinventei. E foi assim que virei a mulher do Fabio, a mãe da
Khadija, do Ferdinando e da Filomena (embora tenha perdido minha Mimi). Foi
assim que saí do Brasil sem falar “uma palavra” de inglês para morar na
Indonésia em pleno pós Tsunami.
A essa
altura eu já sabia que não tinha Lupus, mas o médico já havia alertado: Algo
autoimune você tem, mas o quê?
Oras bolas!
Se ele ( o médico) não sabia, como é que eu ia saber?
Mas sabe
quando você tem uma cicatriz, ou um defeitinho congênito e se acostuma com ele?
Eu acabei
me acostumando com as dores nas articulações (as quais eu sempre atribuía ao
excesso de esforço por causa da dança), com a bronquite, o prolapso da válvula
mitral e todo o resto. Acho que já fazem tantos anos que não passo um único dia
sem sentir dor que pra mim o que fazia diferença era só a intensidade da dor.
Só que essa intensidade começou a sair de controle, o pé direito começou a
enrijecer e o quadril começou a travar, as mãos perderam a força e o cansaço
passou a ser muito intenso.
Começou a
demorar um bom tempo até que eu pudesse pôr-me de pé e caminhar normalmente.
(Se isso já seria bem chato para qualquer um de nós, imagina só o que significa
para uma pessoa que dança, que pinta e que é mãe de uma bebê de quase três
anos.)
Então já
não dava mais para fazer vistas grossas e eu voltei a procurar médicos que
pudessem lançar uma luz ao meu problema.
Eu já havia
passado por inúmeros ortopedistas. Um deles depois de me receber torta de dor
no seu consultório me perguntou se eu era “chiliquenta” e me disse que era
normal que pessoas estressadas tivessem reações psicossomáticas. Eu perguntei a
ele como que em 2 minutos ele havia chegado a conclusão de que tudo era apenas
psicossomático e ele alegou que era porque eu andava curvada (cabisbaixa) e
tinha um olhar de quem não dormia por muito tempo.
Eu então
expliquei que havia chegado do Vietnam na tarde anterior e que tinha viajado 48
horas na classe econômica, sem esticar as pernas direito e sem dormir. Com um
bebê pendurado no pescoço e uma mala na mão. Argumentei que estava torta de dor
e não de depressão, stress ou falta de autoestima, dai ele me deu uma
infiltração e me mandou embora. Isso foi há cerca de três anos atrás e teria
ajudado muito se ele tivesse pedido exames ao invés de fazer uma consulta no
estilo mãe Diná, tentando julgar meus sintomas pela cara torta que eu tinha em
função de um jet leg horroroso.
O fato é
que o paciente autoimune, principalmente aquele que ainda não foi
diagnosticado, sofre horrores com esse tipo de “ bullying médico “. Você passa por inúmeros especialistas e eles
(quando não conseguem achar o diagnóstico) ficam tentando te convencer que você
não tem nada demais. Você sai do consultório dos caras, desejando o cartão de
um bom psiquiatra, afinal em teses você não passa de uma histérica,
hipocondríaca e mal resolvida pessoa.
Lembro-me
que a primeira vez que me queixei de dores articulares, falta de ar e dor no
peito e os exames não mostraram nada, exceto um prolapso da válvula mitral bem
leve, a médica me disse que pediria novos exames e que se nada fosse encontrado,
ela me enviaria para um tratamento psicológico.
Eu tinha
uns 22 anos quando ela me disse isso. Vejam que eu já podia estar sendo tratada
há pelo menos 20 anos se os médicos por aí fossem mais holísticos, humildes e
honestos a admitir que não sabem tudo, nem nunca saberão. É mais fácil, muito
mais fácil culpar o paciente por sentir dor, cansaço e exaustão. Dai você
desiste de procurar respostas e passa a conviver com a dor. Ela passa a fazer
parte da vida e depois de um tempo você já nem lembra o que era ter uma vida
sem dor.
E dizem por
aí, que a tudo a gente se acostuma, não? Pois é...
As doenças
autoimunes são doenças silenciosas. E são bem cruéis.
Se você
conta que tem uma doença grave, as pessoas esperam um certo fator dramático na
história. Quando você explica que não vai morrer disso, mas que às vezes fica
cansada demais para varrer uma casa, e que já não consegue mais dançar como
antes, ou que tem medo porque seu dedão está ficando torto, então as pessoas
perdem a compaixão instantaneamente.
Seu cabelo
não vai cair, você não vai morrer disso e nem tampouco vai se entrevar numa
cama. Mas levantar a cada dia é um esforço múltiplo. Tudo dói, tudo trava e o
cansaço é aberrante.
Talvez você
me ache um tanto mórbida, mas eu precisava e queria falar sobre isso.
Eu
precisava esgotar minhas dúvidas, meu sentimento de inadequação.
Eu preciso
encontrar pessoas que pudessem me explicar pra onde isso tudo caminharia.
Pessoas que me falassem sobre suas limitações e superações. Gente como eu que
entenderia que ser portador de uma enfermidade não precisa te deixar com cara
de lixo nem com aparência de doente, mas ao mesmo tempo explicar que uma
aparência bonita não significa necessariamente, saúde. Existirão dias em que eu
estarei com a cara ótima mas doente de verdade, mas desde já, aviso aos
navegantes! Eu não vou parar de dançar.
Eu já
dancei um dia inteiro com o pé quebrado, acha ndo que era so mau jeito. Ja
ensaiei com o joelho amarrado e aprendi com a Cláudia Alonso e alguns outros
amigos e parceiros de teatro e dança, que a dor pode ser superada pelo prazer.
Imagino que
seja algo assim como o parto. Um tipo de dor que compensa.
Ainda não
sei como vou resolver isso, não é só a dor, a demora do diagnóstico fez isso
espalhar e agora meu pulmão definitivamente decidiu parar de colaborar. Tenho
tido repetidas crises de asma e tá muito difícil reverter qualquer gripinha sem
ter que acabar apelando para antibiótico e corticoide, mas há muitas lições que
podemos aprender diante de uma enfermidade:
Duas quais
eu realmente latejam em meu peito agora, são: a efemeridade da vida e o poder
da compaixão. No entanto há uma outra lição,
a maior de todas:
O livro só acaba quando você escreve fim.
Eu não sei
em que ponto da historia da minha vida eu me encontro. Não sei quantos anos de
vida me aguardam e tampouco sei o que essa enfermidade ira "fazer
comigo". Mas uma coisa eu sei.
Essa
historia não termina aqui. E não quero e não vou me resumir a essas pequenas
lutas diárias.
Eu não vou
sucumbir a essas dores.
Eu sou
muito maior que isso e tenho muito a fazer nessa vida.
Tenho uma
filha que e um verdadeiro anjo, um marido que eu amo feito louca, amigos que eu adoro, e tenho ainda um mundo
inteiro de sonhos e desejos e lutas particulares dos quais eu ainda não desisti
(e há ainda as lutas que não são as minhas, mas as nossas, de toda a
humanidade.) Ainda há muitas Belo Montes para fechar, muito educação para
partilhar, muitos direitos humanos a se garantir, muita pobreza para vencer,
muita arte para espalhar e muito empoderamento para partilhar.
Eu não vou
sucumbir a nada disso, porque como diz o dito popular, que aquilo que não nos
destrói, nos faz mais fortes. É o chavão mais verdadeiro do mundo! Então eu vou
lá embaixo no porão das minhas duvidas e incertezas e vou chorar, espernear,
ficar louca da vida, xingar o meu destino e bater boca com a minha sina, mas daí
vou sair de lá, em cima do salto alto.
Linda e de cabeça
erguida, porque o bom de ter tido uma vida dura, é aprender a se reconstruir
quantas vezes forem necessárias.
Essa não será
a primeira, nem a ultima vez da minha vida, em que eu terei que me reinventar
para sobreviver, mas sabe? Quando era adolescente eu li um livro chamado
"a ilha da chuva e do vento". Não lembro mais nada da historia do
livro, mas há uma coisa que nunca me saiu da cabeça.
Em uma
parte da história, uma senhora nativa dizia a sua jovem filha: A vida é como um
cavalo. Você monta nele e o domina. Diz o caminho que quer seguir e o conduz
pela estrada que deseja ir, mas se você não toma as rédeas do cavalo, então ELE
te leva para onde quer. E às vezes nem ele mesmo sabe pra onde está indo. Então
nunca se esqueça: Tome a rédeas do cavalo. Tome as rédeas da sua vida.
A frase não
era exatamente assim, mas essa foi a mensagem que ficou no meu coração para
sempre (livros são poderosos eu sempre digo!).
Tenho
ciência em que existirão dias eu que eu desabarei, e que vou achar que o mundo
vai acabar. Vou ter raiva das dores, dos remédios e das limitações.