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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Resiliência

Quando eu recebi o diagnóstico de Espondilite Anquilosante, confesso, fiquei confusa, perplexa e chocada.
Já havia mais de dez anos que eu lutava contra um inimigo invisível que me roubava a energia, a força e a vitalidade. Ainda assim, eu me choquei. 
Foi um misto de sentimentos. Por um lado eu me via absolutamente perplexa com o fato de que eu realmente tinha uma enfermidade crônica, incurável e o pior de tudo, debilitante e progressiva, mas por outro lado a enfermidade já estava aqui há muitos e muitos anos, minando minhas forças e sabotando meu futuro, então vamos lá! Qual a novidade?
A novidade é que meu inimigo agora tinha nome, e com o seu nome vieram juntas as armas para derrotá-lo.
E havia outro alívio. Eu não estava louca, não era frescura nem chilique.
Há dez anos atrás quando desconfiaram pela primeira vez de que eu pudesse ser portadora de uma doença autoimune, eu contei com pouquíssimos amigos ao meu lado.
Há dois que posso citar sem medo de ser injusta com todos os outros: Luciano Demetrius e Marina Korte.
Foi com ombro deles que eu contei quando chorei, surtei, desmontei.
Eu que era “firmona” na igreja. Cantava, dançava e ensinava as crianças a dançar, tive meu momento de queda e desespero. Na época, as dores eram insuportáveis, e eu desmaiava e perdia bebês.
Eu desabei! E com raras exceções, como a Silvia que até chorou quando eu contei da suspeita da médica, quase todos os outros lançavam olhares desconfiados, como se tudo não passasse de uma encenação exagerada. Na ocasião eu escrevi no meu blog que havia tomado um porre em São Paulo. Eu escrevia entre outras coisas sobre a generosidade de uma mulher estranha, que me encontrou vomitando no banheiro de um boteco da Rua Maria Antonia. Sentou ao meu lado, ali ao pé da privada, segurou a minha testa enquanto eu vomitava, e ainda acarinhava meus cabelos.
Não me fez uma pergunta, não me julgou. Sentou-se ali com uma bêbada desconhecida e tudo que fez foi dar amor. Eu comentei que naquele momento era como se visse o próprio Deus ali ajoelhado ao meu lado, cuidando de mim. E sim, essa é a visão que eu tenho de Deus.
Eu chorei com ela e comecei a gritar que ia morrer, que não ia mais conseguir dançar, que não poderia ter filhos e que teria uma vida cheia de limitações. Ela me abraçou e disse: Meu tio tem câncer. Eu sei como é triste enfrentar uma doença sendo assim tão jovem, mas vocês vão ficar bem.

Não tenha medo que tudo ficará bem.

E eu saí de lá tomando essas palavras como profecias para a minha vida e tendo a certeza de que eu havia encontrado uma dessas fadas de botequim.
Postei o que aconteceu no meu blog. E arrematei com uma música do Los Hermanos que dizia: Deus manda a cavalaria, que hoje a fé me abandonou. ( música original dizia: se existe Deus, manda a cavalaria).
Não sei se foi autocomiseração, carência ou puro excesso de sinceridade, mas o castigo veio a galope: O post do porre aliado a outras denuncias de má conduta cristã da minha parte (algumas absolutamente infundadas e caluniosas) me levaram a ser “disciplinada” pela direção da igreja.

Imagina que legal! Você descobre que está doente, toma um porre desesperada com a situação e daí é castigada por causa disso. Talvez o esperado fosse tomar o porre escondido e continuar fazendo cara de super santa, mesmo sentindo que o mundo ruía aos meus pés.
Apesar de toda dor eu não posso me queixar de nada disso.
 
A suspeita de uma doença ruim me levou ao limite da angustia e isso de certo modo foi absolutamente libertador.
Eu passei os primeiros dias cantando Chico Buarque: Façam muitas manhãs que se o mundo acabar eu ainda não fui feliz!
E daí decidi ser feliz na marra!
Isso colocou muitas coisas da minha vida em crise. Já não havia espaço para nada mais que não me fizesse bem.
Não posso dizer que isso chegou a ser algum tipo de manifestação hedonista. Eu sempre fui muito certinha, muito mais voltada aos outros do que a mim mesma, e nem sabia direito como fazer para viver só o que me agradava, mas eu comecei a tatear meu passado perdido e meu futuro embaçado.
Sabe quando a Clarice Lispector diz que ate cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, porque não se sabe qual e o defeito que sustenta o edifício inteiro? Então, foi assim...
Cortei tanto das minhas loucuras, ousadias e rebeldias, que já não me achava não espelho.
Eu já não recitava a bíblia, mas Cecilia Meirelles: “Eu não tinha esse rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro. Nem estes olhos tão vazios, nem os lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas. Eu não tinha este coração que nem se se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face? “.  E Mario de Sá Carneiro: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto, e hoje quando me sinto, é com saudade de mim”.
Tudo ao meu redor sufocava, o trabalho, o casamento, a família e alguns de seus problemas recorrentes e um “tantão” de falsos amigos que jurava de pé junto que eu não percebia o mal que me causavam.
Apesar desse entorno, eu achava que teria a vida toda para consertar tudo e o senso de finitude me despertou rapidamente da letargia que me acometia.
Nessa época, minha jovem prima, que estava lutando no hospital lutando contra um lúpus horroroso era meu termômetro. Ela era ainda mais jovem que eu e tinha dois filhos para criar.
Foi nessa hora,  que os “conselhos” da Isadora Duncan deram direção pra minha vida: “ Você já foi ousada, não permita que a amansem”.
E daí endoidei, fui longe, rompi amarras, me libertei, me permiti, e infelizmente no processo, feri gente que não merecia, mas foi assim que recomecei, que me reconstruí e me reinventei. E foi assim que virei a mulher do Fabio, a mãe da Khadija, do Ferdinando e da Filomena (embora tenha perdido minha Mimi). Foi assim que saí do Brasil sem falar “uma palavra” de inglês para morar na Indonésia em pleno pós Tsunami.
A essa altura eu já sabia que não tinha Lupus, mas o médico já havia alertado: Algo autoimune você tem, mas o quê?
Oras bolas! Se ele ( o médico) não sabia, como é que eu ia saber?
Mas sabe quando você tem uma cicatriz, ou um defeitinho congênito e se acostuma com ele?
Eu acabei me acostumando com as dores nas articulações (as quais eu sempre atribuía ao excesso de esforço por causa da dança), com a bronquite, o prolapso da válvula mitral e todo o resto. Acho que já fazem tantos anos que não passo um único dia sem sentir dor que pra mim o que fazia diferença era só a intensidade da dor. Só que essa intensidade começou a sair de controle, o pé direito começou a enrijecer e o quadril começou a travar, as mãos perderam a força e o cansaço passou a ser muito intenso.
Começou a demorar um bom tempo até que eu pudesse pôr-me de pé e caminhar normalmente. (Se isso já seria bem chato para qualquer um de nós, imagina só o que significa para uma pessoa que dança, que pinta e que é mãe de uma bebê de quase três anos.)
Então já não dava mais para fazer vistas grossas e eu voltei a procurar médicos que pudessem lançar uma luz ao meu problema.
Eu já havia passado por inúmeros ortopedistas. Um deles depois de me receber torta de dor no seu consultório me perguntou se eu era “chiliquenta” e me disse que era normal que pessoas estressadas tivessem reações psicossomáticas. Eu perguntei a ele como que em 2 minutos ele havia chegado a conclusão de que tudo era apenas psicossomático e ele alegou que era porque eu andava curvada (cabisbaixa) e tinha um olhar de quem não dormia por muito tempo.
Eu então expliquei que havia chegado do Vietnam na tarde anterior e que tinha viajado 48 horas na classe econômica, sem esticar as pernas direito e sem dormir. Com um bebê pendurado no pescoço e uma mala na mão. Argumentei que estava torta de dor e não de depressão, stress ou falta de autoestima, dai ele me deu uma infiltração e me mandou embora. Isso foi há cerca de três anos atrás e teria ajudado muito se ele tivesse pedido exames ao invés de fazer uma consulta no estilo mãe Diná, tentando julgar meus sintomas pela cara torta que eu tinha em função de um jet leg horroroso.
O fato é que o paciente autoimune, principalmente aquele que ainda não foi diagnosticado, sofre horrores com esse tipo de “ bullying médico “.  Você passa por inúmeros especialistas e eles (quando não conseguem achar o diagnóstico) ficam tentando te convencer que você não tem nada demais. Você sai do consultório dos caras, desejando o cartão de um bom psiquiatra, afinal em teses você não passa de uma histérica, hipocondríaca e mal resolvida pessoa.
Lembro-me que a primeira vez que me queixei de dores articulares, falta de ar e dor no peito e os exames não mostraram nada, exceto um prolapso da válvula mitral bem leve, a médica me disse que pediria novos exames e que se nada fosse encontrado, ela me enviaria para um tratamento psicológico.
Eu tinha uns 22 anos quando ela me disse isso. Vejam que eu já podia estar sendo tratada há pelo menos 20 anos se os médicos por aí fossem mais holísticos, humildes e honestos a admitir que não sabem tudo, nem nunca saberão. É mais fácil, muito mais fácil culpar o paciente por sentir dor, cansaço e exaustão. Dai você desiste de procurar respostas e passa a conviver com a dor. Ela passa a fazer parte da vida e depois de um tempo você já nem lembra o que era ter uma vida sem dor.
E dizem por aí, que a tudo a gente se acostuma, não? Pois é...
As doenças autoimunes são doenças silenciosas. E são bem cruéis.
Se você conta que tem uma doença grave, as pessoas esperam um certo fator dramático na história. Quando você explica que não vai morrer disso, mas que às vezes fica cansada demais para varrer uma casa, e que já não consegue mais dançar como antes, ou que tem medo porque seu dedão está ficando torto, então as pessoas perdem a compaixão instantaneamente.
Seu cabelo não vai cair, você não vai morrer disso e nem tampouco vai se entrevar numa cama. Mas levantar a cada dia é um esforço múltiplo. Tudo dói, tudo trava e o cansaço é aberrante.
Talvez você me ache um tanto mórbida, mas eu precisava e queria falar sobre isso.
Eu precisava esgotar minhas dúvidas, meu sentimento de inadequação.
Eu preciso encontrar pessoas que pudessem me explicar pra onde isso tudo caminharia. Pessoas que me falassem sobre suas limitações e superações. Gente como eu que entenderia que ser portador de uma enfermidade não precisa te deixar com cara de lixo nem com aparência de doente, mas ao mesmo tempo explicar que uma aparência bonita não significa necessariamente, saúde. Existirão dias em que eu estarei com a cara ótima mas doente de verdade, mas desde já, aviso aos navegantes! Eu não vou parar de dançar.
Eu já dancei um dia inteiro com o pé quebrado, acha ndo que era so mau jeito. Ja ensaiei com o joelho amarrado e aprendi com a Cláudia Alonso e alguns outros amigos e parceiros de teatro e dança, que a dor pode ser superada pelo prazer.
Imagino que seja algo assim como o parto. Um tipo de dor que compensa.
Ainda não sei como vou resolver isso, não é só a dor, a demora do diagnóstico fez isso espalhar e agora meu pulmão definitivamente decidiu parar de colaborar. Tenho tido repetidas crises de asma e tá muito difícil reverter qualquer gripinha sem ter que acabar apelando para antibiótico e corticoide, mas há muitas lições que podemos aprender diante de uma enfermidade:
Duas quais eu realmente latejam em meu peito agora, são: a efemeridade da vida e o poder da compaixão. No entanto há uma outra lição,  a maior de todas:
 O livro só acaba quando você escreve  fim.
Eu não sei em que ponto da historia da minha vida eu me encontro. Não sei quantos anos de vida me aguardam e tampouco sei o que essa enfermidade ira "fazer comigo". Mas uma coisa eu sei.
Essa historia não termina aqui. E não quero e não vou me resumir a essas pequenas lutas diárias.
Eu não vou sucumbir a essas dores.
Eu sou muito maior que isso e tenho muito a fazer nessa vida.
Tenho uma filha que e um verdadeiro anjo, um marido que eu amo feito louca,  amigos que eu adoro, e tenho ainda um mundo inteiro de sonhos e desejos e lutas particulares dos quais eu ainda não desisti (e há ainda as lutas que não são as minhas, mas as nossas, de toda a humanidade.) Ainda há muitas Belo Montes para fechar, muito educação para partilhar, muitos direitos humanos a se garantir, muita pobreza para vencer, muita arte para espalhar e muito empoderamento para partilhar.
Eu não vou sucumbir a nada disso, porque como diz o dito popular, que aquilo que não nos destrói, nos faz mais fortes. É o chavão mais verdadeiro do mundo! Então eu vou lá embaixo no porão das minhas duvidas e incertezas e vou chorar, espernear, ficar louca da vida, xingar o meu destino e bater boca com a minha sina, mas daí vou sair de lá,  em cima do salto alto.
Linda e de cabeça erguida, porque o bom de ter tido uma vida dura, é aprender a se reconstruir quantas vezes forem necessárias.
Essa não será a primeira, nem a ultima vez da minha vida, em que eu terei que me reinventar para sobreviver, mas sabe? Quando era adolescente eu li um livro chamado "a ilha da chuva e do vento". Não lembro mais nada da historia do livro, mas há uma coisa que nunca me saiu da cabeça.
Em uma parte da história, uma senhora nativa dizia a sua jovem filha: A vida é como um cavalo. Você monta nele e o domina. Diz o caminho que quer seguir e o conduz pela estrada que deseja ir, mas se você não toma as rédeas do cavalo, então ELE te leva para onde quer. E às vezes nem ele mesmo sabe pra onde está indo. Então nunca se esqueça: Tome a rédeas do cavalo. Tome as rédeas da sua vida.
 
A frase não era exatamente assim, mas essa foi a mensagem que ficou no meu coração para sempre (livros são poderosos eu sempre digo!).
Tenho ciência em que existirão dias eu que eu desabarei, e que vou achar que o mundo vai acabar. Vou ter raiva das dores, dos remédios e das limitações.
Haverão dias em que eu vou me deparar com a minha fraqueza e o meu cansaço. Eu sei disso. Mas hoje não. Hoje estou muito ocupada, encantada com a minha própria força.